“Tudo que é sólido demancha no ar”

 

“Tudo que é sólido desmancha no ar” – Friedrich Engels e Karl Marx

Quando Karl Marx e Friedrich Engels cunharam esta famosa frase, em 1848, no Manifesto do Partido Comunista, possivelmente não esperavam que a metáfora, usada para ilustrar a teoria de que o capitalismo como modo de produção ruiria por si mesmo, seria tantas vezes retomada e (re)significada ao longo da história.

Marshall Berman, em 1982, vai buscar a consagrada metáfora e a emprega em seu livro de mesmo título já como apologia aos processos observados na chamada pós-modernidade, chamando atenção para a diluição de categorias e instituições, objeto também da obra estudada na última aula da disciplina, Modernidade Líquida, de Zigmund Bauman.

Na obra, o autor chama a atenção para os processos iconoclastas a que assistimos durante os últimos dois séculos, a partir de um entendimento desse adjetivo estendido não só relacionado ao âmbito religioso, mas também aos processos políticos, culturais, sociais e econômicos. Muito buscou-se subverter a ordem colocada nessas diversas esferas, uma ordem castradora e reguladora, como a que é retratada no filme Metropolis, com a mecanização do trabalho humano. O filme traz exatamente a crítica ao modelo econômico mais combatido por fortes movimentos e ideologias nos últimos séculos, o Capitalismo, na medida em que expõe a faceta cruel desse sistema – formatadora, massificadora, desumanizante e altamente desigual, assegurando a concentração de poder e renda ao primar pela propriedade e pela hierarquia

No entanto, essa subversão tinha como mote uma reconstrução de algo novo pautado em ideologias construídas e embasadas na realidade, que contavam com inúmeros seguidores, apaixonados e dispostos a desconstruir o que estava dado em nome da árdua e trabalhosa reconstrução de modelos que acreditavam ser mais justos e adequados à vida humana. A diferença desse tempo para o tempo em que vivemos – e que talvez justamente por isso venha recebendo tantos nomes: pós-modernidade, modernidade líquida – está no fato de essas ideologias terem ruído na história. A principal ideologia antagônica à ordem capitalista, o socialismo, não encontrou objetividade prática nos países em que foi colocado, ou, quando ocorreu de fato, acabou resultando em algo muito diferente do propunha o marxismo e suas vertentes. O fim da União Soviética coroou este “fracasso” e serviu e ainda serve de argumento chave para aqueles que simpatizam com a hipótese de Fukuyama acerca do que seria o “fim da história” em termos de modo de produção econômica.

O que assistiríamos, então, seria um mundo descontruído e sem rumo, uma carência de ideologias norteadoras que resulta em uma humanidade fragmentada e sem respostas a problemas de proporções astronômicas como a miséria. Um mundo fluido.

Para Bauman, “essa forma de derreter os sólidos deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar – nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com eles.” 1

Assistiríamos, dessa forma, a uma diluição de tudo. É nesse contexto, onde até mesmo valores tradicionais e arraigados acabam diluídos, que um mecanismo adquire cada vez mais poder, a mídia. Ela se fortalece na medida em que oferece sentido e sensação de pertencimento e identidade em um universo de escassez desses valores. É exemplo disso a publicidade contemporânea, que promove os valores da sociedade capitalista e do neoliberalismo, ainda que velados, realizando uma relação de causalidade direta entre consumo e poder, o poder de compra é retratado como realização pessoal, forma como acaba sendo tomado pelo senso comum, de maneira geral – ainda que não se adote aqui uma concepção de receptor como “tábula rasa” a ser manipulada pelo conteúdo que a entidade Grande Mídia decide transmitir e que se entenda que há outros inúmeros fatores imbricados na construção desse senso comum.

Para ilustrar essa modernidade líquida, desconstruída e carente de rumos, é possível citar desde exemplos mais banais, como a cozinha do famoso cozinheiro espanhol Ferran Adriá, que brinca com a textura dos pratos, criando inúmeras inovações como sopas sólidas e sorvetes alcoólicos.

 Sopa Ferran Adriá

 

 

 

 

 

 

 

 

Até a diluição progressiva a que se assistiu ao longo dos anos de grandes instituições, como a própria arte, que passou por vários estágios de desconstrução até assistirmos a exemplos como a última Bienal, que contou com um andar inteiro vazio:

 

Após essa reflexão, convém finalizar o post chamando a atenção para um aspecto dessa corrente de pensamento a que pertence Zigmund Bauman que tem levado a muitas críticas por parte de correntes de pensamento mais engajadas politicamente. Uma característica dos chamados autores pós-modernos (embora Zigmund Bauman não identifique a si mesmo como componente de tal vertente) está no relativismo exacerbado. Uma crítica possível consiste em dizer que a desconstrução em si mesma acaba levando ao pessimismo, na medida em que não propõe soluções. Embora respeite e considere a obra e todo o pensamento do autor uma excelente reflexão e contribuição para o pensamento sobre a sociedade atual, atrevo-me a apontar um perigo em pensar que a humanidade está completamente fluida e desprotegida.

 É preciso levar em conta o esforço, a organização e o engajamento de todos os setores que, embora de maneira fragmentada, reprimida e, muitas vezes, atrapalhada, têm tentado dirigir, apontar caminhos, levar a discussão ou construir coletivamente (seja lá a orientação teórica/político/ideológica) novas relações, transformações, éticas, modos de organização e produção cultural, econômica, simbólica e ideológica. São movimentos sociais, partidos políticos, “tribos”, movimentos organizados de inúmeras formas (principalmente na era da internet).

 Esses setores, embora não desmereçam ou contradigam em nenhuma medida o modelo de modernidade líquida – talvez até o reforcem –  podem representar uma luz no fim do túnel da reconstrução de algo que ainda não sabemos o que será.

BAUMAN, Zigmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Pg. 10

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