Do fordismo à acumulação flexível.[1]

Tratamos em posts anteriores sobre as transformações que a pós-modernidade trouxe para o campo da cultura e das ideias, a partir da refutação de concepções totalizadoras típicas do modernismo iluminista. Permito-me aqui, portanto, resgatar as transformações materiais, ou seja, os novos sentidos que o processo de acumulação de capital concedeu à organização do trabalho, no fluido mundo contemporâneo.

Alguns autores pós-modernos, como André Gorz e Habermas, defendem que a ‘sociedade do trabalho’ estaria em crise, uma vez que a exploração extenuante do trabalhador, existente na era fordista, nas amplas plantas industriais, como retratado em Metrópolis, não existiria mais. A configuração do capitalismo atual teria criado relações mais diversificadas de trabalho, deixando a divisão marxista da sociedade, entre detentores e não detentores dos meios de produção, ultrapassada.

Entretanto, como lembra Harvey [1], uma análise mais profunda das transformações materiais ocorridas na passagem da modernidade para o período posterior permite concluir que a configuração do trabalho, na pós-modernidade, é uma particular e nova combinação de velhos elementos dentro da lógica dominante de acumulação de capital, fazendo com que a compreensão marxista do capitalismo seja ainda vigente.

Segundo Harvey [1], a crise do fordismo ocorreu em razão da rigidez do sistema em absorver as demandas geradas pelo capital, intensificando-se nos anos 70 com as altas do petróleo. A partir de então, a busca primordial pelo lucro permanece, mas as formas de obtê-lo transformam a organização industrial em um sistema de acumulação flexível.

As unidades de produção são descentralizadas e a planta industrial, portanto, desmantelada. Cria-se uma urgência na obtenção de retorno do capital, em razão da maior competitividade, o que leva a construção de sistemas sob demanda, sem estocagem, de produção. Também surge uma maior “flexibilidade” nos processos de trabalho, com subcontratações, terceirizações e contratos temporários, complexificando as relações trabalhistas. A especulação do mercado de ações atinge seu ápice, uma espécie de “empredimentismo com papéis”, que torna a produção secundária e leva ao surgimento das grandes corporações e oligopólios, de limites transnacionais.

Dessa maneira, as novas empresas globais passam a se autointitular como produtoras de ideias e estilos de vida, se desresponsabilizando pela exploração do trabalho, que passa a ocorrer em linhas de produção terceirizadas. Quando, na verdade, elas não só a perpetuam, como criam novos mecanismos ideológicos para justificá-la.

Desorganizados pela dispersão das plantas industriais, os trabalhadores têm dificuldades de indentificar-se enquanto classe, e passam a reconhecer-se como parte importante de uma equipe, “colaboladores” de determinada empresa. Apoiadas na publicidade e na comunicação corporativa, as marcas globais vendem mesmo essa ideia, a falácia de que todos fazemos parte do processo, que cada um é importante dentro da produção, não se tratando, portanto, de algo exploratório, mas de uma relação colaborativa. Comumente, por exemplo, ouvimos trabalhadores se refirirem a medidas de ‘suas’ empresas na primeira pessoa do plural: “Nós estamos buscando novos mercados”; “Nós vamos cortar gastos”; “Estamos investindo no mercado asiático”.

Pode-se concluir, portanto, que, principalmente após os anos 80, a classe trabalhadora foi atingida duramente em sua subjetividade e materialidade, com a ruína das tentativas de transição ao socialismo, a diminuição do número efetivo de operários nas fábricas e decréscimo de participação sindical. Ainda assim, como demonstra Antunes [2], admitir que a exploração do trabalho não é mais o lócus central do lucro capitalista, é adotar uma visão fragmentada de mundo, de discursos desconexos, que não favorecem a mudança.

Antunes [2] afirma que há sim um processo de complexificação e heterogeinização do trabalho (assalariamento do setor médio, subcontratação e precarização do trabalho, empregos temporários), mas demonstra a centralidade da “classe-que-vive-do-trabalho”, como fonte de exploração do lucro capitalista, e por isso mesmo, como importante vetor da transformação social.

A superação do modo de produção fordista não trouxe, então, como sugere metafóricamente Fritz Lang, na cena final de Metrópolis, um acordo pacífico entre trabalhadores e empresários, em um sistema capitalista mais “justo”. Ao contrário, perpetuou e complexificou a exploração, só que com artifícios ideológicos mais eficazes, fazendo com que o pós-modernismo trouxesse consigo uma atitude blasé diante do mundo.

[1] HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 6 ed. São Paulo: Loyola, 1996.

[2] ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez Editora, 1995

 

2 Respostas to “Do fordismo à acumulação flexível.[1]”

  1. Achei o texto incrível. É um desafio por vezes relacionar os temas do filme com os assuntos tratados nas aulas, e além disso acrescer outros elementos como esta questão da evolução nas relações de trabalho e superação dos modelos tradicionais. Muito bom!

  2. Clara Castellano Says:

    Ae, Rafael… valeu pela força! Legal que vc gostou! Mas acho que todos os textos do blog, até agora, conseguiram fazer essa relação mto bem! E vamos agitar os comentários mesmo! hehe

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